Quando as dinastias se iniciaram, Osíris era considerado um deus que estava morto mas que ainda vivia e que, portanto, era um governante morto ao invés de um governante dos mortos. Assim, pois, o faraó falecido vinha a ser Osíris e seu filho, que o sucedia no trono, vinha a ser Hórus, o filho submisso, que atuava para manter vivo a seu pai no outro mundo. Aos poucos essa concepção eclipsou a idéia de que o defunto iria fazer companhia ao deus-Sol. O faraó era um deus em vida e tinha que continuar sendo um deus governante na morte. Sob esse enfoque, a morte nenhuma mudança trazia para a vida do rei: ele era deus na Terra e ao morrer se incorporava ao círculo dos deuses; ele era um soberano na Terra e ao morrer continuava exercendo sua soberania no outro mundo. O caminho a trilhar, entretanto, não era fácil. Os Textos das Pirâmides mostram os complicados obstáculos que teriam que ser vencidos para que o faraó pudesse alcançar o êxito e a felicidade na outra vida. Na foto ao lado, escultura em ouro da XXII dinastia (c. 945 a 712 a.C.) representando Osíris.
Há textos rituais para acompanhar a alimentação, o aprovisionamento e o serviço do rei morto — enumera o egiptólogo John A. Wilson. Há exorcismos contra as serpentes, os escorpiões e outras coisas perigosas que podiam infestar a terra na qual o rei era sepultado. Há hinos muito antigos, fragmentos de mitos e rituais de reis pré-dinásticos, destinados a relacionar o rei morto com o passado glorioso e a projetar sua realeza na outra existência. E há muitos textos destinados a antecipar a admissibilidade e a autoridade do faraó no outro mundo e a convertê-lo em um akh, ou seja, em um "ser de glória" e em uma "personalidade efetiva". Essas beatificações colocavam-no em companhia dos deuses como um deus.
O mesmo autor nos ensina que os textos tanto podiam ser extremamente humildes quanto altamente arrogantes. Uns prometiam que o faraó seria o escriba do deus-Sol, ou que seria um disforme e divertido anão e dançaria para divertir os deuses; outros pintam o faraó como o mais poderoso de todas as divindades, que se apodera do trono do deus-Sol e devora literalmente os deuses incorporando em si todos os seus poderes. Tudo o que favorecesse a vida efetiva e eterna do rei morto era válido. Mas as provas pelas quais o faraó teria que passar para conseguir uma nova vida e até ficar rejuvenescido, levando uma existência paradisíaca, eram muitas.
O primeiro passo era a mumificação, para que o faraó ficasse parecido com Osíris, com todos os membros amarrados por ataduras. A procissão fúnebre levava o corpo ao templo funerário onde ocorria o ritual da Abertura da Boca, o qual restituia ao defunto o uso dos seus membros e de todos os seus órgãos. O morto voltaria a enxergar, abriria a boca para falar e comer, poderia mover braços e pernas. A tumba tinha uma falsa-porta, ou seja, onde havia uma parede sólida imitava-se os contornos de uma porta. O rei não podia atravessar a parede sozinho; um mensageiro divino vinha ao seu encontro, segurava-o pelo braço e o levava para o céu, ao encontro de seu pai. Mas antes do faraó subir ao céu para comer e beber com os deuses, precisava empreender uma árdua e perigosa viagem.
Seu destino era um país chamado Neter-Khert, "A Terra dos Deuses da Montanha". Para chegar lá o faraó tinha de atravessar um longo e tortuoso lago de juncos. A área pantanosa era vencida com a ajuda de um Barqueiro Divino. Depois do lago, de um deserto e de uma cadeia de montanhas, o rei chegava ao Duat, a mágica "Morada para Subir às Estrelas". Em sua obra A Escada para o Céu, o pesquisador russo Zecharia Sitchin esclarece que a localização e o nome desse lugar vêm confundindo os estudiosos há muito tempo. Alguns pensam que se tratava do Outro Mundo, a Morada dos Espíritos, para o qual o rei, tal como Osíris, deveria ir. Outros afirmam que ele era um Mundo Subterrâneo e, de fato, muitas das cenas que o descrevem (como esta ao lado) mostram um labirinto de túneis, cavernas com deuses que não podem ser vistos, poças de água fervente, luzes fantasmagóricas, câmaras guardadas por pássaros e portas que se abrem sozinhas. Essa terra mágica possuía doze divisões e era atravessada em doze horas.
O rei só conseguia atravessar todas as divisões porque Rá colocava a sua disposição seu barco ou trenó mágico, no qual o faraó viajava auxiliado por deuses protetores. O Duat era circundado por montanhas entre as quais havia sete desfiladeiros, todos guardados por fortificações cujas portas eram fortes. O faraó tomava a rota que levava para um desses desfiladeiros com cerca de 22 quilômetros de comprimento. Ele passa entre dois picos de montanhas, em cada um dos quais está postada uma companhia de 12 deuses guardiães. Nas proximidades, um lago de água fervente que, surpreendentemente, tem superfície fria ao toque. O local tem um forte cheiro de betume. Apesar disso, não muito longe dali viceja um oásis.
No fim do desfiladeiro, mais deuses que lhe dizem: Entre em paz. O faraó chega, assim, à segunda divisão do Duat. Ali, pessoas de longas cabeleiras comem seus jumentos e dependem dos deuses para água e sustento, pois o lugar é árido e os rios estão sempre secos. Até mesmo a embarcação que leva o rei precisa se transformar num barco de terra para atravessar a região.
Na Terceira Hora o faraó atinge Net-Asar, ou seja, o rio de Osíris. Essa divisão é habitada pelos lutadores e nela ficam os quatro deuses encarregados dos quatro pontos cardeais. O rio aparece nas ilustrações como um curso de água que corre mansamente por uma área cultivada. Passa por entre uma cadeia de montanhas e se divide em afluentes. Nesse ponto fica a Escada para o Céu. Os Textos das Pirâmides dizem que esse lugar era a escadaria para atingir as alturas. Os degraus são descritos como os degraus para o céu, assentados para o rei, para que ele possa através deles subir aos céus. A meta do rei é atingir essa escada, mas para chegar a ela é preciso entrar no Amen-Ta, a Terra Oculta de Seker, deus dos Territórios Selvagens.
Essa quarta divisão do Duat é chamada de País das Trevas ou Terra da Escuridão e é descrita como um círculo fortificado que só pode ser atingido pela entrada numa montanha e a descida por seus corredores em espiral, protegidos por portas secretas. A entrada está ladeada por dois muros e a passagem entre eles está tomada por labaredas e protegida por deuses guardiães. O faraó se apresenta: Sou o Touro, um filho dos ancestrais de Osíris. Um deus chamado Sa emite uma ordem e as chamas se extinguem, os guardas se afastam, as portas se abrem automaticamente e o faraó entra no mundo subterrâneo. As divindades tranquilizam o rei afirmando que, apesar de estar entrando pela boca do chão, aquilo é de fato o Portão para o Céu. O faraó passa a percorrer túneis e cavernas onde deuses são vistos ou apenas ouvidos. Em barcos silenciosos, deidades navegam nos canais. Luzes fantasmagóricas, águas fosforescentes e lanternas iluminam o caminho e o rei prossegue na direção dos pilares que alcançam o céu.
Nesse ponto, Sitchin afirma que os textos e as antigas ilustrações sugerem que o faraó entrou num complexo circular subterrâneo, dentro do qual corre um grande túnel em espiral, que primeiro desce e depois sobe. As representações, mostrando um corte transversal da área, apresentam um túnel descendente com cerca de 12 metros de altura, teto e piso lisos, ambos feitos de um material sólido, com uma espessura de 50 a 90 centímetros. O túnel está dividido em três níveis e o rei avança pelo corredor do meio. O superior e inferior são ocupados por deuses, serpentes e estruturas para uma variedade de funções. O trenó do rei, puxado por quatro deuses, começa a avançar deslizando silenciosamente pelo corredor do meio; apenas uma luz que sai da proa do veículo ilumina o caminho. Porém, a passagem fica bloqueada por uma divisória em ângulo, o que obriga o faraó a descer e continuar a pé.
O faraó, misteriosamente, passa pela parede inclinada e continua sua descida em espiral, atravessa uma porta e se vê no terceiro nível, o mais profundo. Entra numa antecâmara e é saudado por um deus chamado de O Mensageiro dos Deuses e por uma deusa que usa o emblema emplumado de Shu. O rei pergunta-lhes se pode subir e prosseguir a viagem como Osíris e a resposta é positiva. As duas divindades dão passagem ao faraó abrindo uma pesada porta e permitindo sua entrada nos corredores que só os deuses ocultos podem utilizar.
Chega a Quinta Hora e o soberano alcança a parte mais profunda do subterrâneo, os caminhos secretos de Seker. Nos desenhos a divindade é representada como uma pessoa com cabeça de falcão, em pé sobre uma serpente e segurando duas asas. O rei não vê o deus, pois este encontra-se dentro de uma estrutura oval completamente lacrada e guardada por duas esfinges. O faraó apenas ouve um ruído forte, como o ouvido nas alturas do céu quando ele é perturbado por uma tempestade. Da câmara lacrada verte uma lagoa cujas águas são como fogo. Embora Seker esteja oculto, sua presença pode ser percebida por causa de um brilho que sai da cabeça e dos olhos do grande deus, cuja carne irradia luz. É nesse momento em que o faraó passa por sobre a câmara na qual Seker está oculto que se dá seu julgamento: seus feitos e coração são pesados e avaliados. Uma deusa, da qual só se vê a cabeça, anuncia a decisão final: Venha em paz para o Duat... avança em teu barco na estrada que fica dentro da terra. Denominando-se a si mesma de Ament (A Oculta), ela acrescenta: Ament te chama para o firmamento, como o Grande que está no horizonte. Vencido o teste o rei renasce e passa incólume por uma fileira de deuses cuja missão era a de punir os condenados. O faraó foi considerado digno de uma outra vida e retorna ao seu barco acompanhado de uma procissão de divindades, das quais uma segura o emblema da Árvore da Vida.
A divisão seguinte, a sexta, é associada a Osíris. Deuses com cabeça de chacal, que abrem caminhos, convidam o rei a dar um mergulho refrescante na lagoa subterrânea ou Lago da Vida, como o próprio marido de Ísis fizera ao passar anteriormente por ali. Outros deuses, que zumbem como abelhas, residem em cubículos, representados na figura acima, cujas portas vão se abrindo sozinhas enquanto o faraó avança. Enquanto progride o rei passa pelos 12 deuses que seguram a corda no Duat, pelos 12 que seguram o cordão de medir e por um caminho curvo denominado O Caminho Secreto do Lugar Oculto. O barco do faraó é puxado por deuses vestindo peles de leopardo, como os sacerdotes que conduzem a cerimônia de Abertura da Boca. Nesse ponto do Livro dos Mortos os capítulos têm títulos como: O capítulo de cheirar o ar e conseguir força. O veículo do soberano agora possui poderes mágicos... ele viaja por onde não existe rio e não há ninguém para puxá-lo; ele realiza isso por meio de palavras de poder, as quais saem da boca de um deus.
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