OS DEUSES EGÍPCIOS ERAM REPRESENTADOS ora sob forma humana, ora sob forma de um corpo humano com cabeça de animal e ora ainda sob a forma de animais, considerados sagrados. O culto de tais animais era um aspecto importante da religião popular dos egípcios e remonta a épocas pré-históricas. Os homens da pré-história egípcia tinham o maior respeito em relação aos fenômenos da natureza e às características amedrontadoras ou admiráveis dos animais, seja a ferocidade do leão, a força do crocodilo ou os desvelos da vaca com sua cria. Ao irem paulatinamente surgindo as divindades, passavam a ser representadas sob a forma de animais, ainda que dirigissem as atividades humanas ou, pelo menos, com elas se preocupassem. A adoração de divindades sob a forma zoomorfa, ou seja, sob forma de animais, é atestada pela primeira vez por volta da metade do IV milênio a.C. Dessa época foram encontradas sepulturas de animais, tais como chacais, gazelas, carneiros e touros, arranjadas com bastante cuidado e contendo oferendas. Paletas de culto passam a ser esculpidas com formato de animais e trazem, tanto na frente quanto no verso, animais gravados em relevo. No final daquele milênio, são criadas pequenas figuras que representam com grande vivacidade os macacos, as rãs, os hipopótamos e outros bichos. Por sua vez, as representações antropomorfas das divindades, ou seja, deuses com forma humana, surgem por volta de 2700 a.C. De maneira geral a divindade com forma humana traz o seu atributo na cabeça ou no lugar dela, tratando-se normalmente do hieróglifo do seu nome. Finalmente, a forma compósita associando os elementos animais aos elementos humanos é atestada pela primeira vez na III dinastia (c. 2649 a 2575 a.C.) e esse tipo de representação passa a ser tão normal quanto as duas anteriores. Excepcionalmente pode aparecer a divindade com corpo de animal e cabeça humana.
OS TEÓLOGOS OFICIAIS AFIRMAVAM que nos animais — como no boi Ápis, por exemplo — encarnava-se uma parcela das forças espirituais e da personalidade de um ou mais deuses. O fato de se representar deuses na forma animal permitia tornar as forças da divindade menos abstratas para o povo. Uma imagem familiar como a de um animal passava às pessoas um conceito mais concreto dos poderes da divindade e essa é uma das razões pela qual um deus podia ser representado por vários animais diferentes. Em essência, os poderes e as características de um deus eram transmitidos pela forma ou formas que ele assumia e, dessa maneira, podiam ser entendidos mais facilmente. Citemos como exemplo a deusa Hátor, que além de aparecer na forma de vaca, também podia figurar como leoa, serpente, hipopótamo ou, ainda, deusa-árvore. Cada uma destas manifestações — esclarece o pesquisador Ernst Fahmuller — refere-se a um traço característico da deusa. Elas não têm nada a ver com seu verdadeiro aspecto exterior, pois a forma real da divindade permanece com efeito "oculta" e "secreta". Só o defunto, justificado e iluminado, tem o direito de conhecê-la e está em condições de fazê-lo. Os textos religiosos relatam o encontro nos sonhos ou no além-túmulo com a divindade, mas ela jamais é descrita. Só a proximidade do deus é perceptível, seja por um tremor de terra ou uma tempestade, seja por seu perfume ou seu raio luminoso.
AS DIVERSAS MANEIRAS DE REPRESENTAR as deidades só podem mostrar uma parte da natureza divina de cada uma delas e disso resulta, inevitavelmente, a multiplicidade das formas de representar os deuses. Ainda mais, se duas ou mais divindades são associadas, como por exemplo Amon e Rá em Amon-Rá, o número de formas de aparição possíveis se multiplica pelas diversas combinações. Cada deus preserva, não obstante, sua autonomia, que não é absorvida pela outra divindade, limitando um pouco o número de tais combinações. A imagem de culto era um corpo da divindade, o qual ela poderia habitar temporariamente. Ficava fechada no santuário do templo e só o sacerdote estava autorizado a visitá-la. O animal vivo, considerado em alguns santuários como a encarnação da divindade, é uma forma especial de imagem de culto. Tal como na imagem esculpida do santuário, o deus Ptah podia residir no touro de Mênfis, Khnum no carneiro de Elefantina e Sebek no crocodilo de Kom Ombo.
AO LONGO DOS SÉCULOS os egípcios prestaram cultos a várias espécies, tais como gatos, falcões e íbis, e divinizaram alguns animais vivos. Estatuetas, amuletos, e paletas de ardósia que representavam animais foram encontrados em vários túmulos. Nas representações artísticas os animais sagrados usavam um enfeite de cabeça que os identificava com o deus que encarnavam. O disco solar com o uraeus era o enfeite mais comum, mas existiam outros como veremos aqui. Nas épocas mais primitivas os animais eram adorados em si mesmos. Com o passar dos séculos passou-se a entender que o deus não residia em cada vaca ou em cada crocodilo. O culto era dirigido a um só indivíduo da espécie, escolhido de acordo com determinados sinais, com determinadas características do corpo e entronizado num recinto especial. Tais animais eram considerados a imagem viva do deus, o corpo no qual a divindade havia decidido habitar para viver entre os homens. A eles eram dedicados honras e cuidados especiais e ao morrerem os animais sagrados eram cuidadosamente mumificados e sepultados em cemitérios exclusivos. Essa idolatria cresceu a partir do Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.) e no Período Tardio, iniciado aproximadamente em 712 a.C., na tentativa de reforçar a religião nativa diante das estrangeiras, nasceu uma zoolatria ilimitada abrigando novamente a concepção de que cada touro, carneiro ou crocodilo podia encarnar a divindade.
OS ESCRITORES CLÁSSICOS ACHAVAM que o culto dos animais era objeto no Egito de uma doutrina secreta. Se dissesse porque são sagrados os animais, diz o historiador grego Heródoto (aprox. 480-425 a. C.), me introduziria nas coisas divinas, coisas que evito antes de tudo narrar. Diodoro de Sicília, outro historiador grego, também diz que o culto estranho e incrível que os egípcios rendem aos animais oferece grandes dificuldades para aquele que investiga suas causas; os sacerdotes possuem uma doutrina secreta sobre ditas causas.
O EMINENTE ARQUEÓLOGO Gaston Maspero ensina: O antigo Egito rendeu culto aos animais, e cada nomo (província) alimentava, junto a seu deus-homem, um deus-animal, que submetia à veneração dos fiéis (...) todos esses animais foram em princípio adorados como tais; alguns, como o leão, a esfinge, o crocodilo, porque eram temidos e neles reconheciam força, brio, agilidade superior à do homem; outros, como os bois, o ganso, o carneiro, porque eram bons servidores do homem, facilitando-lhe a vida. Mais tarde, modificou-se a primeira idéia, ao menos entre os teólogos, e o animal cessou de ser deus, para converter-se em morada, tabernáculo vivente, o corpo, no qual os deuses infundiam, por assim dizer, uma partícula de sua divindade. O falcão foi encarnação de Hórus, e não Hórus em si, o chacal e o boi foram encarnação de Anúbis e Ptah, porém não Anúbis e Ptah pessoalmente. A partir de então, os deuses foram concebidos indiferentemente em sua forma animal ou em sua forma humana, e algumas vezes em forma mista, na qual os elementos humanos e animais combinavam-se de acordo com proporções diversas. Hórus, por exemplo, é ás vezes homem, outras falcão, ora falcão com cabeça humana, ora homem com cabeça de falcão. Nestas quatro formas é Hórus, sem preferência de uma delas às três restantes.
NÃO PODEMOS DEIXAR DE CONSIDERAR que a religião egípcia, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, tinha marcantes aspectos monoteistas. As inúmeras representações dos deuses do panteão egípcio são evocações dos diversos papéis desempenhados por um deus único; são facetas do aspecto eterno da divindade. É nesse sentido que devemos entender o culto que aquele povo rendia a certos animais e até mesmo a certas plantas como é o caso, por exemplo, da árvore do sicômoro, na qual vivia a deusa Hátor, ou da flor de lótus, associada ao deus Nefertem. Mas era sobretudo na forma de animais que as divindades se manifestavam a seus fiéis: Hórus era um falcão; Thoth era um íbis; Bastet uma gata e Khnum um carneiro, para citar apenas alguns exemplos. Como escreveu Porfírio (234 a 305 d.C.), filósofo da escola de Alexandria, sob a forma de animais os antigos egípcios adoravam a potência universal que os deuses haviam revelado nas mais variadas formas viventes da natureza. |