O CRIADOR DA RAÇA HUMANA


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O CARNEIRO, animal considerado excepcionalmente prolífico pelos egípcios, simbolizava um dos deuses relacionados com a criação. Segundo a lenda, o deus Khnum, um homem com cabeça de carneiro com chifres horizontais, como pode ser visto nessa estatueta de bronze pertencente ao Museu Britânico de Londres, era quem modelava, em seu torno de oleiro, os corpos e os kas (réplicas imateriais dos corpos) dos deuses e, também, dos homens e mulheres, pois plasmava em sua roda todas as crianças ainda por nascer. Entendia-se que a divindade criava o ka das pessoas em seu torno de oleiro e depois colocava-o no seio materno em forma de sêmen. Acreditava-se ainda que ele tinha modelado o ovo primordial, do qual saiu a luz solar no início dos tempos.

ELE É UM DOS MAIS ANTIGOS DEUSES EGÍPCIOS, possuidor de numerosos atributos, considerado como um dos criadores do universo. Seu culto remonta ao período pré-dinástico (final do V milênio a 3200 a.C.). Inicialmente era representado apenas na sua forma animal: um carneiro com chifres horizontais retorcidos. O nome da divindade já aparece nos vetustos Textos das Pirâmides e surgia frequentemente como parte dos nomes de pessoas ou faraós como, por exemplo, Khufu, forma egípcia de Kéops, cujo significado é Khnum protege-me. Em egípcio a palavra que designava o ba, ou seja, a alma e o carneiro, o animal sagrado do deus, era a mesma. A divindade era, então, considerada como sendo o ba ou alma de alguns deuses como do deus , por exemplo. Por isso, em sua viagem noturna pelo mundo subterrâneo dos mortos, Rá surgia com a aparência do deus Khnum. Em alguns casos é representado por um homem com quatro cabeças de carneiro que simbolizavam, segundo o egiptólogo Karl H. Burgsh, o fogo, o ar, a terra e a água. Também se afirma que tais cabeças referem-se a quatro deuses muito ligados a Khnum: Geb e Shu, representando o poder criador da divindade; Rá, que foi criado a partir do ovo modelado por Khnum e Osíris, que foi ressuscitado pelo deus em Elefantina. Uma terceira hipótese afirma que as quatro cabeças seriam os quatro pontos cardeais.

KHNUM TAMBÉM FOI CONSIDERADO uma divindade solar e associado ao deus-Sol Rá formando, juntos, a divindade Khnum-Ra. Nesse caso aparecia representado com um disco solar e um uraeus na cabeça. Outras das formas pelas quais se representava o deus era a de um homem usando a coroa dupla do faraó; a de um homem com um jarro de água na cabeça ou a de um homem com um jarro nas mãos, do qual sai água. Nesse último caso existe uma simbologia mais direta com a inundação do Nilo que, acreditavam os egípcios, o deus comandava. Desde o Império Antigo que a mitologia conta que esse Divino Oleiro criava não apenas homens e faraós, mas também outros deuses. Dependendo do ser a ser criado, ele empregava materiais diferentes: seres divinos eram feitos com ouro e seus cabelos com lápis-lazúli; os mortais eram feitos com barro vermelho-pardacento do Nilo.

É MUITO INTERESSANTE observar como essa idéia da criação dos homens por um Divino Oleiro persisitiu ao longo de toda a história da humanidade. Milhares de anos após a construção das pirâmides, Khnum ainda era adorado pelos gnósticos, uma seita semi-cristã. A própria Bíblia preserva essa tradição religiosa antiquíssima. A lenda egípcia da criação do mundo pelo deus Khnum diz, a certa altura:

A lama do Nilo, aquecida ao máximo pelo Sol, fermentou e gerou, sem sementes, as raças de homens e os animais.
A Bíblia, por sua vez, não deixa dúvida sobre a crença no conceito do Divino Oleiro quando afirma no capítulo 2, versículo 7, do Gênesis: Formou então o Senhor Deus o homem, com pó da terra e insuflou em suas narinas um hálito de vida, e deste modo o homem se tornou um ser vivo. No versículo 6 do capítulo 33 do Livro de Jó a idéia reaparece quando Eliú, lembrando aos mais velhos que ele tem o direito de falar na presença deles, afirma: Eis que diante de Deus somos iguais; também do barro fui plasmado. Mais duas referências a esse assunto aparecem no Livro do Profeta Isaías. No capítulo 29, versículo 16, se lê: Que perversidade a vossa! O oleiro é como o barro? Uma obra pode dizer ao seu artífice: "Não sou sua obra!"? Dirá um pote do seu oleiro: "Ele nada sabe!"? e no versículo 7 do capítulo 64 está escrito: No entanto, Senhor, és nosso Pai. Somos o barro, és nosso oleiro; somos todos obras de Tuas mãos. Os autores bíblicos descreveram a criação dentro dos conhecimentos da época, ou seja, baseados em informações transmitidas de geração em geração desde a mais remota antiguidade e embora a assirologia tenha sido estudada amplamente em suas relações com o Velho Testamento, a influência egípcia nesse sentido ainda não foi devidamente considerada.

A OLARIA, TANTO DE PEDRA QUANTO DE BARRO, era o símbolo do deus Khnum e como o carneiro de chifres horizontais não era nativo do Egito e pode ter sido trazido do leste, alguns estudiosos acreditam que a técnica da fabricação de recipientes de pedra dura pode ter sido ensinada aos egípcios por pastores migratórios que tinham esse animal como símbolo. Na escrita hieroglífica ele era representado por um vaso. Também era descrito como o deus do Nilo e das inundações anuais, as quais provocava só com o estender das mãos.

SEU CENTRO DE CULTO ERA A CIDADE DE ELEFANTINA, situada na ilha do mesmo nome, junto à primeira catarata do rio Nilo. De lá se originavam as inundações, em uma caverna sagrada que ficava por baixo da ilha e que era a sua moradia. Dali ele controlava a fertilidade no país, enviando metade das águas do rio para o sul e metade para o norte. Um dos velhos deuses cósmicos, Khnum é descrito como autor das coisas que são, origem das coisas criadas, pai dos pais e mãe das mães e é tido como o senhor da primeira catarata. e também como senhor dos peixes. A influência desse deus cresceu de forma contínua nos primeiros tempos, mas diminuiu após a XII dinastia (1991 a.C.), voltando a ganhar forças na XVIII dinastia (c. de 1550 a.C.). A divindade considerada esposa de Khnum variava de acordo com a região de culto. Em Elefantina ela era Anqet, representada por uma mulher usando um adorno de cabeça feito de longas penas e que se acreditava fosse a responsável pela distribuição de água fresca e potável. Em Antinoópolis, sua esposa era Heqet, deusa com cabeça de rã, também associada à criação e ao nascimento, e ambos, marido e mulher, assistiam ao nascimento das crianças. Em Esna, outro importante centro de culto daquele deus e onde havia um santuário a ele dedicado da época de Tutmósis III (1479 a 1425 a.C.), sua esposa era Neith, deusa da guerra e da caça. Junto ao templo de Khnum em Elefantina foram encontrados vários túmulos contendo múmias de carneiros.

OUTRA DAS FACETAS DO DEUS KHNUM era a de divindade funerária, tendo sido adorado como o senhor do além-túmulo ou o senhor do destino. Parece natural que assim fosse por tratar-se de uma divindade subterrânea que habitava em uma caverna e de lá comandava as águas do sub-solo e, ainda, porque seu poder de criar vida no mundo dos vivos levava a supor que podia igualmente criar vida no mundo dos mortos.

DURANTE O REINADO DO FARAÓ DJOSER (c. 2630 a 2611 a.C.), da III dinastia, a cheia insuficiente do rio Nilo durante sete anos causava fome à população e inquietava o rei. Este, então, enviou um sacerdote com o objetivo de descobrir as nascentes daquele rio e, sobretudo, a causa da persistência do seu baixo nível. Aquela era uma época na qual os egípcios ignoravam tudo acerca do Nilo além da primeira catarata, ou seja, além da ilha de Elefantina.

AO VOLTAR DE SUA VIAGEM, disse o sacerdote ao faraó:

Existe uma cidade no meio da corrente; o Nilo envolve-a. Chama-se Elefantina. O Nilo oferece a cheia... Khnum encontra-se ali... com a mão no fecho da porta, e só abre os dois batentes se lhe apetece.

A REFERÊNCIA FEITA PELO SACERDOTE À PORTA FECHADA é uma imagem que evoca a garganta que o rio forma estreitando-se antes da cascata. Khnum era o deus que reinava naquela região e nela os egípcios acreditavam que o rio Nilo nascia de um mar subterrâneo. Os deuses daquela região tinham importância especial na medida em que podiam interferir com a inundação, sendo o deus carneiro considerado o responsável pelo controle da cheia anual.

EM SONHO, KHNUM ANUNCIOU AO REI que a falta de inundação era devido à negligência para com os deuses da região da catarata. O faraó, então, por decreto, restabeleceu os territórios e oferendas aos deuses, garantindo dessa forma que a enchente chegasse a partir daquele momento, infalivelmente, até à altura necessária. De fato, no ano seguinte o Nilo subiu na data prevista e a um nível elevado e a população se rejubilou com a idéia de que a ira do deus se aplacara.

TRÊS QUILÔMETROS ao sul de Elefantina há uma ilha denominada Sehel na qual foram encontradas diversas estelas. É em uma delas, conhecida como Estela da Fome ou Estela da Carestia, do período de Ptolomeu V Epifânio (205 a 180 a.C.), que essa lenda aparece. Era uma época de grandes sublevações civis e políticas. A região que tinha sido a sede original da adoração a Khnum passara a ser invadida pelo culto à deusa Ísis. No oitavo ano do reinado de Ptolomeu V a inundação do Nilo ultrapassou os limites razoáveis, reduzindo por algum tempo a terra cultivável e gerando fome. O clero do deus Khnum administrava os assuntos referentes às cheias nilóticas. Acredita-se que, por volta do ano 190 a.C., os sacerdotes pesquisaram e encontraram, na biblioteca de Hermópolis, velhos textos que permitiam demonstrar como as enchentes anormais do Nilo haviam sido contornadas no passado. Os documentos, datados do tempo do faraó Djoser, falavam de generosas oferendas a Khnum visando acabar com a fome. Assim os sacerdotes puderam relembrar a Ptolomeu V que seu culto já acumulava mais de 2500 anos de experiência em como enfrentar com eficácia as anomalias do rio. Provaram, ainda, que o território concedido a Ísis fora dedicado a Khnum pelo próprio faraó Djoser. Produziram, então, uma estela que servia de marco territorial, ao mesmo tempo que demonstrava a prosperidade trazida ao Egito pela administração cuidadosa, ao longo dos séculos, de seu culto ao deus que controlava as cheias. Bem assessorado pelos sacerdotes, Ptolomeu V executou obras que desviaram o excesso das águas do Nilo para canais apropriados, o que gerou uma colheita abundante e, agradecido, ele baixou um decreto concedendo diversas vantagens aos templos do deus Khnum.

KHNUM CRIANDO HATSHEPSUT OUTRO EPISÓDIO ligado à mitologia do deus Khnum refere-se ao nascimento da rainha Hatshepsut, que se proclamou faraó no decorrer da XVIII dinastia. Em seu templo mortuário de Deir el-Bahari (c. de 1490 a.C.) os relevos exaltam o nascimento divino da rainha e justificam o seu direito ao trono. Eles contam que o grande deus Amon-Rá desejava ser o pai do próximo soberano do Egito. Tomando então a forma do faraó reinante, Tutmósis I, o deus seduziu sua esposa principal, Aahmes. Depois revelou quem era e disse à rainha:

Hatshepsut será o nome da filha que coloquei em teu corpo. Ela exercerá o poder real sobre toda a terra do Egito. Dar-lhe-ei minha fama, minha autoridade e minha coroa e ela governará as Duas Terras sob minha proteção.

AO DEIXAR A RAINHA, Amon-Rá foi diretamente ver Khnum e lhe disse:

Trate agora de fazer a futura governante do Egito. Faça-a e ao seu espírito do meu próprio corpo. Dê-lhe uma forma melhor que a dos deuses, porque lhe dei toda a saúde, riqueza e felicidade para viver para sempre como o deus Rá.

KHNUM RESPONDEU-LHE:

Vou tratar disso imediatamente. Ela parecerá mais esplêndida do que os próprios deuses quando aparecer em glória como a soberana do Egito.

NOS CONTA O EGIPTÓLOGO T.G.H. JAMES que no relevo que representa esse ato de criação da menina, Khnum aparece sentado diante de uma mesa baixa e redonda que é a sua roda de oleiro. No alto da mesa, estão duas diminutas figuras, ambas aparentemente masculinas; uma deverá ser Hatshepsut e a outra, seu espírito. Em frente, ajoelha-se a deusa Heqet, uma divindade de cabeça de rã que transmite vida às figuras.

ENQUANTO TRABALHA, Khnum profere um encantamento apropriado:

Eu te crio do corpo de Amon, o maior de Karnak. Vou fazer-te melhor que os deuses. Dou-te toda a saúde, riqueza, força e felicidade. Dou-te todas as terras, todos os povos, todas as oferendas e todos os víveres. Far-te-ei aparecer em glória sobre o trono de Hórus, como o deus-Sol Rá. Farei de ti o maior dos seres vivos quando brilhares como a soberana do Alto e Baixo Egito, como teu pai Amon-Rá ordenou.

AO QUE PARECE ASSIM FOI FEITO, pois Hatshepsut esteve entre os maiores soberanos do Egito.


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