OS EGÍPCIOS CONVIVIAM com uma grande quantidade de serpentes que infestavam as margens do rio Nilo. Não é de se estranhar, portanto, que tivessem convertido algumas delas em deusas, da mesma forma que o fizeram com outros animais que os rodeavam. Uma dessas deusas serpentes era Meretseger, adorada em Tebas e patrona da necrópole tebana e que, acreditava-se, morava no Cume do Ocidente, um majestoso pico do Vale dos Reis. Bastante representada na escultura, no Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.) tornou-se deusa muito cultuada e querida pelos habitantes de Deir el-Medina, vila dos operários que construíram as tumbas reais, que a ela dedicaram várias estelas. Seu culto tornou-se menos popular a partir da XXI dinastia (c. 1070 a 945 a.C.), aproximadamente o período durante o qual a necrópole tebana foi abandonada. Tanto surgia como uma naja ereta, com o pescoço dilatado, quanto como uma enorme serpente com cabeça de mulher. A peça que vemos acima é confeccionada em um pedaço de figueira policromada e mede 37,4 cm de altura por 26,5 cm de profundidade. De data incerta, supõe-se que ela seja do Império Novo e proveniente, provavelmente, de Tebas, estando atualmente no Museu do Louvre.
MERETSEGER ERA CONHECIDA COMO a amada do silêncio e, sendo uma deusa local, a pequena comunidade da região a tomava por confidente e, às vezes, a confundia com deusas nacionais como Ísis, Mut e Hátor. Trata-se de uma divindade que bem demonstra que ao lado das fórmulas oficiais da religião estatal havia o sentimento religioso de uma sociedade humilde e de ardente fé. Acreditava-se que essa deusa punia, através de seu veneno e causando cegueira, àqueles que cometiam crimes. Sua ira descia sobre qualquer um que perturbasse as tumbas do Vale dos Reis, geralmente na forma de animais venenosos enviados contra o transgressor. Ela também protegia o vale contra trabalhadores sem escrúpulos que poderiam tentar roubar os tesouros ali enterrados ou escavar uma entrada secreta.
AO QUE PARECE, essa divindade tinha certo pendor para a irritação e fazia questão de ser tratada com bastante respeito. Entretanto, a despeito de sua ferocidade, sabia ser misericordiosa. Se o transgressor se arrependesse dos crimes praticados contra as tumbas, ela curaria as feridas que lhe houvesse aplicado. Uma série de estelas votivas em sua honra parecem indicar isso. Em algumas dessas peças estão inscritos pedidos de cura e de perdão pelos pecados cometidos. Um artesão, por exemplo, tendo ofendido a deusa, ficou enfermo. Expressando sua religiosidade, humildemente reconhece a grande misericórdia da deusa e afirma:
Eu era um homem ignorante e sem coração, não sabendo distinguir o bem do mal; na verdade eu pequei contra o Cume, e ele me puniu. Noite e dia eu estive em seu poder. Eu supliquei à brisa, mas ela não veio... Eu implorei a esta soberana, e ela veio a mim com uma brisa agradável; ela se mostrou misericordiosa depois de me ter feito conhecer seu poder; ela me deu seus favores; ela me fez esquecer meu mau e a brisa voltou. Certamente o Cume do Oeste é indulgente para aquele que lhe implora...
OUTRA ESTELA ERGUIDA por um empregado da necrópole chamado Nefer-abu conta como esse insensato cometeu uma transgressão contra o Cume e foi por isso severamente punido. Mas como a deusa às vezes usava de clemência, ele foi finalmente perdoado e então, em advertência aos demais possíveis pecadores, escreveu:
Guardai isto que direi para grandes e pequenos entre os trabalhadores: cuidado com o Cume! Pois há um leão no interior do Cume, e é como um leão selvagem que ele ataca e persegue todo aquele que lhe desobedece.
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