UMA MULHER COM CABEÇA de leoa, encimada pelo disco solar, representava a deusa Sekhmet, a qual simbolizava o calor e os poderes destrutivos do Sol e protegia o faraó em sua tumba. Era respeitada como aquela que traz a destruição para os inimigos de Rá.
Embora fosse uma leoa sanguinária, também operava curas e tinha um frágil corpo de moça, como se pode ver nessa estatueta conservada no Museu do Cairo. Era a deusa cruel da guerra e das batalhas e tanto causava quanto curava epidemias, sendo a patrona dos médicos. Essa divindade feroz era adorada na cidade de Mênfis, onde formava a tríade menfita juntamente com Ptah, seu esposo, e Nefertem, seu filho. Às vezes era fundida a Bastet, a deusa gata, e muitas vezes era identificada com Mut, a esposa de Amon.
Sua juba — dizem os textos — era cheia de chamas, sua espinha dorsal tinha a cor do sangue, seu rosto brilhava como o sol... o deserto ficava envolto em poeira, quando sua cauda o varria...
UM DIA, QUANDO RÁ, O DEUS SOL, envelheceu, os homens começaram a criticá-lo:
Vejam, Sua Majestade envelheceu. Seus ossos são prata, sua carne, ouro e os seus cabelos são de autêntico lápis-lazúli!
DESCONTENTE, RÁ CONVOCOU O CONCÍLIO DOS DEUSES e declarou-lhes sua intenção de punir a humanidade, de destruir as criaturas rebeldes que criara. Chamou, então, à sua presença a deusa Hátor e, com o fogo dos seus olhos, o deus-Sol transformou-a em Sekhmet, nome que significa a poderosa, enviando-a contra os seres humanos, mas a divindade desencadeou uma grande carnificina, um massacre tão horrível que a Terra se encharcou de sangue.
RÁ, VENDO QUE A DEUSA LHE FUGIRA DO CONTROLE e não desejando exterminar toda a humanidade, mas apenas aplicar-lhe um castigo, lançou mão de um ardil para que o restante dos homens se salvassem. Enviou mensageiros a Elefantina para que colhessem uma certa espécie de grãos vermelhos. Mandou suas criadas prepararem uma grande quantidade de cerveja, especialmente forte, e misturou o suco dos grãos à bebida a fim de que parecesse o sangue dos homens. Sete mil cântaros desse líquido foram, então, espalhados até à altura de três palmos nos campos onde a deusa pretendia prosseguir a matança.
VENDO A TERRA INUNDADA COM A CERVEJA VERMELHA e seu rosto brilhando maravilhosamente com a luz nela refletida, Sekhmet pensou realmente que fosse sangue humano, bebeu muito do estranho líquido e embriagou-se, ficando incapaz de reconhecer os homens e massacrá-los. Ao acordar sua fúria havia passado e a humanidade foi salva. Rá, então, ordenou que daí por diante fosse costume preparar bebidas para a deusa em todas as festas do ano e que a preparação de tais bebidas fosse confiada às mãos das servas. E assim se procedia nas festividades egípcias. Esse mito evoca o aspecto temível da radiação solar que destruiu os inimigos do Egito refugiados no deserto, contrabalançada pelas águas da inundação do Nilo avermelhadas pelos aluviões ferruginosos.
Nessa estela funerária um guardador do rebanho real oferece flores de lótus para a deusa Sekhmet.
DURANTE O REINADO de Amenófis III (c. 1391 a 1353) foram esculpidas numerosas estátuas dessa deusa. Tantas, que hoje em dia todos os museus de egiptologia do mundo conservam pelo menos um exemplar de tais peças. Embora sejam todas oriundas da mesma pedreira, variam por suas dimensões, por seu grau de acabamento e pelo aspecto de suas máscaras leoninas. Apresentada sentada ou em pé, do tamanho de um ser humano ou bem maior, têm sempre o disco solar sobre a cabeça e geralmente trazem na mão o sinal da vida, ou seja, a cruz ansata (ankh). Nesta página vemos dois exemplares de tais esculturas, ambas de diorito. Provenientes de Tebas e pertencentes ao Museu do Louvre, a Sekhmet sentada tem 1,64 m de altura, enquanto que a altura da cabeça fragmentada é de 40,5 cm.
ELA É CAPAZ DE ESPALHAR OS flagelos, — escreve Elisabeth Delange, Curadora de Antiguidades Egípcias do Museu do Louvre — de desencadear sua cólera, selvagem e terrificante, na secura do deserto, mas ao mesmo tempo é ela quem destrói os inimigos do Estado, protege o corpo de Osíris e contribui para a manutenção da ordem cósmica.
A AMBIGUIDADE da personalidade da deusa — prossegue a autora — simboliza na realidade o ritmo cíclico ao qual estava submetido o Nilo. Quando as chuvas africanas não o alimentavam mais, ele secava e parecia desaparecer ao longe nos espaços hostis. Aguardava-se o seu retorno, como um filho pródigo, pois é o Rio que procura o frescor e a vida, quando da inundação benéfica. Então a leoa indisciplinada se transformava em gata amena e doce. Assim nascem as lendas e os mitos que dão um sentido às realidades físicas misteriosas e sazonais.
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