A MÚSICA, O CANTO E A DANÇA


HARPISTA CEGO Embora os antigos egípcios não tivessem um termo específico que correspondesse à nossa palavra música, executavam e ouviam uma excepcional variedade dela. Alguns instrumentos musicais já eram conhecidos desde os primeiros tempos e muitos deles foram encontrados pelos arqueólogos.
Nos túmulos eram frequentemente representadas cenas de banquetes nas quais músicos, cantores e bailarinos apareciam em destaque. É o caso, por exemplo, deste harpista cego de um túmulo da XII dinastia. Tais representações se intensificaram no Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.). Como nestas festas domésticas geralmente homens e mulheres ficavam em ambientes separados, era usual que as mulheres tivessem moças que tocavam para elas, enquanto que os homens escutavam outro conjunto de músicos masculinos.

Infelizmente não temos documentação sobre as melodias, os rítmos e os passos das danças. Apesar disso, é possível reconstituir um pouco da vida musical, dos instrumentos e dos músicos do Egito antigo, graças ao que temos: as palavras das canções; as ilustrações mostrando músicos, cantores e dançarinos; a denominação das pessoas que exerciam tais profissões e os instrumentos depositados como objetos funerários e encontrados em tumbas de quase todas as épocas da história egípcia. Nos relevos achados até hoje jamais aparecem músicos tendo à sua frente um papiro como partitura. Isso levou os arqueólogos a suporem que os egípcios não tinham um sistema musical escrito.

Os principais instrumentos utilizados eram, sem dúvida, flautas, clarinetes e harpas, empregados principalmente por ocasião de festividades religiosas ou da vida cotidiana para execução de uma música circunstancial. Juntavam-se a eles o duplo oboé, a trombeta, o alaúde e a lira. Os instrumentos de percussão normais eram o pandeiro e o tambor, enquanto que os sistros e crótalos eram utilizados como instrumentos de percussão em rituais. Embora o rítmo musical fosse marcado pelos percussionistas, essa função era às vezes substituída pelas palmas.

Ainda que houvesse manifestações musicais nos lares, eram os músicos dos cultos e dos templos que realizavam a maior parte dos eventos nos quais a música tivesse importância. As pessoas acreditavam que os deuses apreciavam e eram pacificados pelas manifestações musicais. Papel de destaque tiveram, a partir do Império Novo, as cantoras desta ou daquela divindade, cuja função consistia justamente em oficiar como executantes do respectivo templo nas cerimonias de culto. É sabido que apenas o faraó e os sumo sacerdotes podiam ver as estátuas de culto das divindades que ficavam nos santuários dos templos. Portanto, se músicos tocavam diante dessas estátuas, pressume-se que teriam que ser cegos. De fato, harpistas masculinos cegos são mostrados em algumas paredes das tumbas, como o que vemos no alto desta página, o que leva a concluir, também, que não havia discriminação social com relação aos deficientes físicos. Em síntese, as atividades musicais faziam parte dos rituais diários dos templos, apareciam com grande destaque nos festivais dedicados aos deuses e ainda faziam parte dos ritos religiosos mais pessoais como era o caso, por exemplo, dos nascimentos e falecimentos.

Canto e dança também faziam parte integrante da vida musical egípcia. Em um papiro do Império Novo, conhecido como Os Ensinamentos de Ani, está dito que o canto, a dança e o incenso são o alimento dos deuses. Pelo menos um instrumento acompanhava quase todas as canções entoadas. O desenvolvimento melódico e a estrutura rítmica da música e do canto eram indicados pelos movimentos das mãos e por gestos transmitidos aos respectivos músicos através da mímica por uma espécie de líderes, denominados atualmente de quirônomos ou quironomistas. A realidade é que em vários relevos do Império Antigo (c. 2575 a 2134 a.C.), ao lado dos instrumentistas, vemos um personagem que faz sinais com as mãos havendo uma relação entre a posição das mãos do instrumentista e os sinais deste personagem. Ao que parece, tais sinais foram a mais antiga forma de notação musical. Considerando que nos desenhos podem aparecer até três quironomistas na mesma cena, parece claro que eles não dirigiam o conjunto como se fossem maestros, mas realmente indicavam as notas que deveriam ser tocadas. Os quirônomos desapareceram a partir do Império Novo.

Os cantos assim estruturados comportavam diferentes gêneros melódicos. Podemos muito bem distinguir os cantos do trabalho de camponeses, de pastores, de pescadores, das mulheres ceifeiras e dos artífices e, ainda, as canções de amor, de entretenimento e, por último mas não menos importante, os cantos fúnebres. Cantar era um elemento fundamental, por exemplo, dos ritos associados com a agricultura. As ceifeiras poderiam cantar um lamento, acompanhado por uma flauta, para expressar sua tristeza pelo primeiro corte da colheita, ato que se pensava siombolizar um ferimento em Osíris, o deus da vegetação.

Também dispomos de informações referentes à formação dos cantores e cantoras. Eles eram instruídos em verdadeiras escolas de canto e tinham uma importante posição dentro da corte faraônica. É egípcio o primeiro músico da história universal cujo nome chegou até nós: chamava-se Khoufouankh, tocava no palácio do rei Userkaf (c. 2465 a 2458 a.C.), da V dinastia, ocupava o posto de cantor, diretor dos cantores e flautista da corte. Por seu prestígio teve permissão de erigir seu túmulo, primorosamente decorado, nas proximidades das pirâmides de Gizé.

Estamos também bem informados — esclarece o professor de egiptologia da Universidade de Constança, Wilfried Seipel — sobre os diferentes gêneros coreográficos em uso desde o Império Antigo graças às numerosas representações conservadas nas tumbas. Do Império Antigo ao Império Novo, e ainda no Período Tardio (c. 712 a 332 a.C.), havia diferentes danças, algumas calmas, sérias, outras, ao contrário, cheias de vida, exuberantes, para não dizer orgiásticas. A maior parte era executada por moças jovens ou mulheres, mas encontramos excepcionalmente algumas danças complicadas executadas por homens.
As dançarinas representadas nas tumbas do Império Novo, com seus longos penteados ou suas grandes perucas, enfeitadas com colares e brincos, estão frequentemente vestidas com longas vestes de linho transparente, que mais revelam o corpo do que o escondem, mas às vezes não trazem mais do que um simples cinto estreito apertado ao redor dos quadris. Crótalos nas mãos, essas jovens moças, alegremente, rodopiavam sobre si mesmas e mantinham toda a audiência sob o encantamento de sua graça e de seus atrativos.

Estatuetas femininas com os braços levantados ou pinturas em cerâmica sobre o tema da dança, datadas do período pré-dinástico, ou seja, muito anteriores a 3000 anos a.C., demonstram que esta é uma manifestação artística bem antiga para os egípcios. Danças podiam ocorrer durante cerimônias religiosas e, ainda, em banquetes e festas populares. Ao término das colheitas, por exemplo, os camponeses dançavam em sinal de alegria. As danças relacionadas aos ritos agrícolas tinham dois objetivos principais: estimular o crescimento da vegetação e agradecer aos deuses os bons resultados. Em um conto intitulado O Nascimento das Crianças Reais, datado do Império Médio, as parteiras que chegam à casa de uma mulher que está em trabalho de parto chegam disfarçadas como dançarinas, quando na realidade são deusas. Pode muito bem ter sido comum que as dançarinas tenham tido um papel relevante na hora dos nascimentos. Havia também danças guerreiras, simbolicamente representando a vitória almejada.

Entretanto, de modo geral, bailarinos e bailarinas eram profissionais do DANÇARINAofício e costumavam fazer parte do pessoal adjunto aos templos. Embora alguns passos pudessem ser comedidos, delicados e graciosos, havia também verdadeiras danças acrobáticas, como bem retratam vários relevos antigos. Em alguns deles se percebe, perfeitamente, a musculosidade das pernas das bailarinas, atestando que faziam dessa atividade a sua profissão. A figura ao lado, uma ostraca de calcário com 16,8 cm de largura da XIX dinastia (c. 1307 a 1196 a.C.), proveniente de Deir el-Medina, a aldeia situada a oeste de Tebas que abrigava construtores de túmulos, mostra o esboço de uma dançarina acrobática. Observe a curiosa posição do brinco que "cai para cima".

A coreografia podia reunir grupos ou pares, mas sempre do mesmo sexo, e na maioria das vezes eram as mulheres que se exibiam, sobretudo nas danças funerárias das quais só elas participavam. Aqui o objetivo era o de alegrar o espírito do morto e espantar os maus espíritos. Nas principais cerimônias em que o faraó comparecia como, por exemplo, quando se erigia o pilar djed, um rito cujo objetivo era dar vida ao deus Osíris; na festa do Heb Sed, um festival no qual o rei passava por um sacrifício simbólico de morte e ressureição; ou na festa de Opet, a maior festividade do ano, na qual Amon era carregado em barcos dourados nos ombros dos sacerdotes, a dança também estava presente.

A deusa Hátor e o deus Bes eram divindades protetoras da música e da dança. Algumas bailarinas costumavam tatuar a perna com imagens do deus Bes. Nas festividades oferecidas não apenas à deusa Hátor, mas também à deusa Bastet, a coreografia assumia grande destaque. Em festividades religiosas podia haver a presença de bailarinos estrangeiros, tais como núbios e líbios, o que ocorreu principalmente no decorrer do Império Novo. Desde os tempos da V dinastia (c. 2465 a.C.) que anões com máscaras leoninas parecem ter sido reunidos aos grupos de mulheres que cantavam e dançavam em ocasiões religiosas. Em alguns casos em que as danças tinham caráter cômico, era muito apreciada a presença de pigmeus.



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