A idéia da filiação divina do faraó se expressa no título real Filho de Rá, instituído a partir da IV dinastia (c. 2575 a.C.). O soberano já era considerado como Hórus, deus do céu, e agora é considerado, ao mesmo tempo, também filho de um deus. Os egípcios não viam nenhuma incompatibilidade nessas duas idéias, nenhuma diminuição da divindade real. Muito ao contrário, o que se pretendia era reforçar a legitimidade das pretensões reais pela origem divina daquele que exercia o cargo.
Em um papiro escrito no decorrer da XII dinastia (1991 a 1783 a.C.), mas cujo conteúdo deve remontar ao Império Antigo (c. 2575 a 2134 a.C.), aquela idéia surge pela primeira vez. O papiro narra que na corte do faraó Kéops (c. 2551 a 2528 a.C.), um certo dia, os filhos do rei se reuniram com o pai e começaram a contar histórias fabulosas tiradas do passado. Um dos filhos do faraó introduziu no recinto o sábio Djédi que anunciou, de maneira profética, os nomes dos reis que reinariam 80 anos mais tarde. Afirmou ele que os três primeiros reis da V dinastia (c. 2465 a 2323 a.C.) seriam trigêmeos, filhos da esposa de um sacerdote do deus-Sol, gerados por uma divindade. Tendo em vista que a V dinastia não descendeu em linha direta da IV dinastia, é possível que o papiro tenha sido uma tentativa de legitimá-la a posteriori. Seja como for, a concepção de uma filiação divina do faraó tornou-se um componente essencial da teologia da realeza e perdurou até o fim da história egípcia.
No reinado de Hatshepsut (c. 1473 a 1458 a.C.), da XVIII dinastia (c. 1550 a 1307 a.C.), o mito da origem
divina do faraó foi registrado em texto e imagens no templo de Deir al-Bahari. Os relevos exaltam o nascimento divino da rainha e justificam o seu direito ao trono. Eles contam que o grande Amon-Rá, deus do império, assumiu o aspecto do pai da rainha, Tutmósis I, e procriou a criança divina com sua mãe terrestre Aahmes. Primeiramente ele comunicou à enéade divina sua decisão de gerar um novo soberano para o Egito e encarregou o deus Thoth de se informar sobre a rainha. Feito o trabalho, Thoth lhe disse:
"Essa jovem mulher de que me falaste, seu nome é Aahmes. Ela é bela, mais do que todas as outras que existem em todo este país; ela é a esposa do soberano, o rei do Alto e do Baixo Egito, Akheperkare [Tutmósis I], que ele viva eternamente. Sua Majestade é um jovem monarca."
[Amon-Rá foi conduzido por Thoth até a rainha, após] ter mudado sua aparência na da Majestade de seu esposo, o rei do Alto e do Baixo Egito Akheperkare.
Eles a encontraram quando ela repousava na magnificência do seu palácio...
Imediatamente ele se dirigiu a ela; ele a desejou; entregou-lhe seu coração; permitiu que ela o visse na sua forma de Deus; depois que ele se aproximou dela, que se deleitou por ver sua beleza, seu amor correu no corpo dela... A seguir ela disse, a esposa e mãe real, Aahmes, na presença da Majestade deste Deus augusto, Senhor dos Tronos das Duas Terras: "Senhor, verdadeiramente como é grande o teu poder! Que coisa extraordinária foi ver a tua face quando tu te uniste à Minha Majestade |
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em tua perfeição e que o teu orvalho penetrou todo o meu corpo."
Depois da Majestade deste Deus ter feito com ela tudo o que desejou, Amon, o Senhor de Karnak, lhe disse: "Hatshepsut-Khnemet-Amon, aquela que se une a Amon, aquela que é a face dos nobres, tal será o nome desta filha que eu coloquei em teu seio, segundo as palavras saídas da tua boca. Ela exercerá um benéfico reinado neste país inteiro... Dar-lhe-ei minha fama, minha autoridade e minha coroa e ela governará as Duas Terras sob minha proteção."
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[Ao deixar a rainha, Amon-Rá foi diretamente ver Khnum, o criador da raça humana, e lhe disse:] "Trate agora de fazer a futura governante do Egito. Faça-a e ao seu espírito do meu próprio corpo. Dê-lhe uma forma melhor que a dos deuses, porque lhe dei toda a saúde, riqueza e felicidade para viver para sempre como o deus Rá."
[Khnum respondeu-lhe:] "Vou tratar disso imediatamente. Ela parecerá mais esplêndida do que os próprios deuses quando aparecer em glória como a soberana do Egito."
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Nos conta o egiptólogo T.G.H. James que no relevo que representa esse ato de criação da menina, Khnum aparece sentado diante de uma mesa baixa e redonda que é a sua roda de oleiro. No alto da mesa, estão duas diminutas figuras, ambas aparentemente masculinas; uma deverá ser Hatshepsut e a outra, seu espírito. Em frente, ajoelha-se a deusa Heqet, uma divindade de cabeça de rã que transmite vida às figuras. Enquanto trabalha, Khnum profere um encantamento apropriado:
"Eu te crio do corpo de Amon, o maior de Karnak. Vou fazer-te melhor que os deuses. Dou-te toda a saúde, riqueza, força e felicidade. Dou-te todas as terras, todos os povos, todas as oferendas e todos os víveres. Far-te-ei aparecer em glória sobre o trono de Hórus, como o deus-Sol Rá. Farei de ti o maior dos seres vivos quando brilhares como a soberana do Alto e Baixo Egito, como teu pai Amon-Rá ordenou."
De forma quase idêntica são contados os mitos que relatam os nascimentos dos faraós Amenófis III (c. 1391 a 1353 a.C.) e Ramsés II (c. 1290 a 1224 a.C.), bem como dos filhos dos deuses da XXX dinastia (380 a 343 a.C.) e da época greco-romana (332 a.C. a c. 395 d.C.). No templo de Amenófis III em Luxor, por exemplo, uma das salas secundárias é conhecida como Sala do Nascimento. Nela existem relevos que representam o nascimento divino simbólico daquele faraó, resultante da união de sua mãe, Mutemwia, com o deus Amon. Nas narrativas feitas a partir da XXX dinastia concebe-se também a mãe como sendo de essência divina, uma idéia que encontra uma expressão ritual nos chamados mammisis, os santuários de nascimento do final da história egípcia.
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