Kadesh, ou Cadesh, ou, ainda, Qadesh é a mais antiga batalha da história da humanidade cujo desenrolar pode ser reconstituído em pormenor. Ela ocorreu perto da cidade de Kadesh, junto ao rio Orontes, em 1285 a.C. Os combatentes eram o faraó Ramsés II (c. 1290 a 1224 a.C.) e o rei hitita Muwatallis e estava em jogo o controle da Síria. Quatro divisões, chamadas de Amon, Rá, Ptah e Seth, formavam o exército egípcio com cerca de 20 mil homens e equipado com carros de combate. Havia ainda uma unidade menor de apoio que funcionava de forma independente. Por sua vez o exército hitita, bem organizado, era constituído por cerca de 25 a 30 mil homens e 3500 carros.
Quando Ramsés II chegou a um dia de viagem da localidade de Kadesh, acampou. Nenhum inimigo podia ser avistado. Dois beduínos, dizendo-se desertores, se renderam como prisioneiros e informaram que o exército hitita estava enfileirado bem mais ao norte. Baseado nessa falsa assertiva, o rei avançou célere e imprudentemente em direção a Kadesh, à frente da divisão de Amon, sem se aperceber que os hititas estavam escondidos logo depois da cidade. Nas primeiras horas da tarde os combatentes egípcios armaram seu novo acampamento (marcado com a bandeirola na ilustração acima). Quando a divisão de Rá, sem nada suspeitar, se aproximou, o seu flanco direito foi alvo de uma carga devastadora dos carros de guerra hititas. Colhida de surpresa em posição de marcha, partida
em duas e superada três ou quatro vezes em forças, a divisão de Rá fugiu desesperada e entrou desordenadamente no acampamento egípcio, atropelando na rota também a divisão de Amon. A divisão de Ptah estava ainda muito longe para poder prestar qualquer ajuda e os egípcios acabaram sendo cercados pelos carros de combate hititas.
O espanto foi grande e os próprios egípcios expressaram isso claramente ao descreverem o fato:
Quando sua Majestade ainda estava sentada no conselho de guerra, com os comandantes, o vil chefe de Khéta já havia chegado com sua infantaria, seus carros de combate e os numerosos povos estrangeiros que estavam com ele. Eles atravessaram a vau o trecho raso do rio ao sul de Kadesh e acometeram sobre o exército de Sua Majestade enquanto aquele marchava e não esperava. Então, a infantaria e os carros de combate de Sua Majestade deles escaparam em direção ao norte, onde se encontrava Sua Majestade. Foi aí que a multidão dos inimigos Khéta cercou os cortesãos de Sua Majestade, que estavam em seus flancos.
Ramsés II não se desesperou. Tentou quebrar o cerco em um setor a leste onde ele ainda não se fechara e conseguiu abrir uma passagem, ao mesmo tempo em que o acampamento era totalmente invadido. Extasiados com as riquezas egípcias, os soldados hititas entregaram-se ao saque. Nesse momento de distração, foram surpreendidos e vencidos pela unidade independente de apoio, formada por recrutas, que talvez tivesse recebido ordens de alcançar Kadesh por outro caminho e chegavam pelo oeste. Entretanto, a batalha prosseguiu. Durante três horas Ramsés II renovou os ataques até que do sul surgiu a divisão de Ptah e os hititas, presos entre dois fogos, ao entardecer, entricheiraram-se dentro das muralhas de Kadesh. Ramsés II estava salvo. No final, os dois exércitos sofreram pesadas baixas, mas nenhum deles foi aniquilado.
Considerando-se que o objetivo do faraó era tomar Kadesh e rechaçar o exército hitita até a Ásia Menor, a batalha foi um tremendo revés. Entretanto, Ramsés II considerou-a uma grande vitória e a mandou descrever em muitos relevos, não apenas em seu templo funerário em Tebas, como também em Luxor, Carnaque, Abido e Abu Simbel e, provavelmente, nos templos desaparecidos do delta nilótico. Ao que se vê, adotou o princípio de que uma mentira muitas vezes repetida acaba tomando ares de verdade. É um relato extenso, conhecido hoje em dia como Poema de Pentaur embora o autor seja desconhecido e Pentaur tenha sido apenas o copista que assinou um dos papiros que contém a história. Talvez não haja outro episódio da história egípcia que ocupe tanta superfície de parede nos templos egípcios quanto esse. Em certo trecho Ramsés II se equipara ao próprio deus da guerra:
Então a Minha Majestade se ergueu semelhante a seu pai Montu, vestiu a armadura de batalha (...).
Mai adiante são fornecidos detalhes sobre a contenda:
Sua parelha de cavalos se chamava Vitória em Tebas e Alegria de Mut (...). Depois Sua Majestade lançou-se ao ataque e penetrou no exército do vencido Khéta (...) e estava sozinho, não havia absolutamente ninguém a seu lado; quando Sua Majestade percebeu, estava cercado por 2500 parelhas, através das quais abriu caminho, nas quais iam todos os guerreiros do inimigo hitita, juntamente com os de muitos países estrangeiros que estavam com eles (...),
com três homens em cada carruagem e atuando em conjunto.
E o rei narra a situação dramática na qual se encontra:
Não há ninguém comigo, nenhum infante, nenhum cocheiro, nenhum soldado de cavalaria. O meu exército foi destruído e não há ninguém para combater contra o inimigo.
Apela, então, para o seu deus:
Ó meu pai Amon, será que um pai ignora o próprio filho? (...) Eu grito a ti, meu pai Amon! Acho-me entre gente desconhecida, todos os países estrangeiros estão unidos contra mim e meu grande exército me abandonou (...) e nenhum dos meus soldados está comigo; se os chamo, ninguém responde. Mas eu chamo Amon, que é mais útil para mim que milhares de infantes e milhares de carros, mais do que dezenas de milhares de irmãos e filhos unidos numa única vontade (...).
A divindade ouve e responde:
Avante! Avante! Eu, teu pai, estou contigo e contigo está o meu braço.
O cocheiro do rei exclama, apavorado:
Ó meu bom senhor, ó valoroso Soberano e defensor do Egito no dia da batalha! Nós estamos sozinhos entre os inimigos (...). Eis que todo o exército nos abandonou! Queres Tu permanecer até que nos tirem a respiração dentre os lábios? Meu deus, salve-nos, ó grande Ramsés!
E o grande Ramsés responde:
Coragem! Reanima o teu coração, ó meu cocheiro! Eu penetrarei entre os inimigos como falcão. Eu mato, massacro, aniquilo!
Quando o deus Amon acudiu em seu auxílio, o faraó conta que viu
os tripulantes dos 2500 carros, em meio aos quais eu estava, converterem-se em montes de cadáveres diante dos meus cavalos.
E quando o rei hitita viu aquilo, mandou um segundo ataque
pelos numerosos príncipes, cada um dos quais tinha seus carros, equipados com armas de guerra (...), todos juntos. Seu total era de 1000 parelhas.
Ao matar, massacrar e aniquilar seus inimigos, o faraó se agigantava e os hititas — sempre no entender dos egípcios — viam nele um ente sobre humano:
Não é um homem que está entre nós; é Seth, poderoso, Baal em pessoa. Os atos que ele pratica não são os de um homem, são os de um ser único, que combate uma centena de milhas sem soldados nem carros; fujamos rapidamente dele para salvar nossa vida a fim de respirarmos o ar.
O relato laudatório também mostra o contraste entre a atitude heróica do faraó e a covarde cautela do rei hitita, o qual não tomou parte da batalha e pernaneceu afastado, encolhido e assustado. Ramsés II avançou impetuosamente por seis vezes contra o inimigo e fez com que a planície de Kadesh se tornasse branca de cadáveres antes que o exército egípcio, disperso, conseguisse juntar-se novamente a ele ao anoitecer. E embora não tenha havido nenhuma batalha no dia seguinte, o rei afirma que houve e que durante ela o sagrado Uraeus cuspiu chamas sobre os inimigos, espalhando a destruição entre eles, tanto que não permaneceram senão montes de cadáveres diante dos meus cavalos. A realidade foi que Kadesh permaneceu intacta nas mãos dos hititas, continuando tudo como antes.
É evidente — comenta o egiptólogo John A. Wilson — que não podemos aceitar com seriedade o milagre de um guerreiro que sozinho derrota um total de 3500 carros, com três guerreiros em cada um. A verdade deve ter sido que houve uma emboscada que teve êxito e que as tropas egípcias escaparam dela com tanto valor que a coalisão hitita não pode obter uma vitória ressonante. Ramsés foi derrotado, mas Muwatallis não pode aproveitar sua vantagem para por o exército egípcio em fuga caótica. O pequeno êxito que Ramsés obteve em meio a um grande desastre foi louvado como um grande triunfo pessoal. Por outro lado, conforme esclarece o mesmo autor, devemos levar em consideração o dogma do Estado egípcio, segundo o qual todo triunfo era indiscutivelmente produto das qualificações do faraó, cuja derrota era inimaginável. Essa era uma parte essencial da mitologia estatal do Egito.
Depois de outros combates nos anos seguintes, egípcios e hititas entenderam que seria melhor economizar as energias que gastavam ao lutar entre si e usá-las para enfrentar
as incursões dos Povos do Mar. Foi feita, então, uma trégua, seguida de um tratado formal com o rei hitita Hattousil III, em 1269 a.C. O acordo instaurou as bases para relações diplomáticas regulares que duraram até a derrocada do império hitita. O texto do tratado está preservado em templos egípcios daquele faraó e em tabuinhas cuneiformes encontradas na capital hitita, sendo o mais antigo documento desse gênero que possuímos. A paz durou mais de 50 anos e foi confirmada por casamentos de Ramsés II com princesas hititas.
|